NO 
GUETO, PENSANDO
Percival 
Puggina
          
Eis que aos poucos se foi impondo em mim essa sensação de que vivo num 
gueto. Sim, sim, eu caminho com liberdade, circulo, falo, opino. Correspondo-me 
com muitos. Vocês me leem. Jornalistas me perguntam o que penso. Eu respondo. E 
mesmo assim, ou quem sabe por isso, habito um gueto. Somos muitos nas mesmas 
condições. Estamos contidos num sítio existencial bizarro, cujas bordas são tão 
invisíveis quanto sensíveis, onde milhões de brasileiros, provavelmente a 
maioria de nós, vamos perdendo relevância, minguando em cidadania e sendo 
suprimidos, até mesmo, do direito de expressar nossas opiniões. 
          
A caçamba e a corda foram recolhidas. As instituições jazem no fundo do 
poço do descrédito. Do ministro do STF ao estudante da USP, do chanceler da 
República ao pagodeiro do Piauí, do ex-presidente ao menino birrento que trata a 
professora aos pontapés, perdeu-se a noção de limites. Mas não lhe passe pela 
cabeça, leitor, apontar causas para o que vê acontecer! Você acabará no gueto. 
Repita então, em concordância bovina, que são sinais dos tempos. 
Preferivelmente, assuma a responsabilidade por tudo. Diga que foi o seu mundo 
que gerou esse mundo. Ataque a corrupção, mas não faça mais do que falar mal 
dela (ela se lubrifica com a saliva dos críticos). Toneladas de palavras, 
hectolitros de saliva. Mas não lhe passe pela cabeça apontar as causas. Jamais 
aponte causas ou ofereça critérios! Concorde prontamente quando disserem que ela 
sempre existiu e é igual em toda parte. Jamais mencione os vocábulos "verdades", 
"princípios" e "valores".
          
No Brasil que abre caminho no século 21, quem propuser algo relevante 
perderá importância. Observe os partidos políticos, por exemplo, e faça como 
eles. Aprenda a crescer com irrelevância. Quanto menos forem daquilo que 
deveriam ser, quanto menor seu conteúdo, mais importantes se tornam. Por isso 
estão fora do gueto. Os programas e ideários em torno dos quais se constituíram 
só cumprem fins higiênicos quando disponibilizados nos banheiros das sedes. Mas 
não ouse dizê-lo. E jamais sustente haver coisas que não se fazem porque o 
caminho dos princípios acaba no gueto.
          
As coisas de que a nação precisa são tão óbvias quanto incômodas. Por 
isso, a coerência se converte em vício constrangedor. O sujeito coerente é um 
antissocial, objeto de intrigas e maledicência. O caso do senador Demóstenes foi 
uma tragédia moral. Mas observe como ainda hoje ressoam gargalhadas de puro 
deleite. Não parecem vindas das profundezas do inferno? Se não quiser vir para o 
gueto, livre-se de suas convicções. É óbvio que este país passa muito bem com 
pouco ou nenhum caráter, sem fé religiosa de qualquer espécie (à exceção da fé 
no grande demiurgo de Garanhuns), submissa à ditadura do politicamente correto, 
do pensamento fraco, da grosseria. É óbvio. Um país crescentemente macunaímico, 
cada vez mais canalha, precisa expurgar a virtude. Há que trancar a nação 
inteira no gueto, se isso for necessário para os arranjos do 
poder.
          
Depois que as li, ainda adolescente, jamais esqueci as palavras com que 
Cyrano de Bergerac defendeu o amor próprio. É uma lição inesquecível. E uma 
condenação. “O que queres que faça? Almoçar cada dia um sapo e não ter nojo? 
Trazer os joelhos encardidos? Exercitar a espinha em todos os sentidos? Gastar o 
próprio ventre a caminhar de bojo? Não, muito obrigado!”. 
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* Percival Puggina (67) é arquiteto, 
empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas 
de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e 
Gaviões.Recebido por e-mail.
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