PROJETOS
DE VIDA E SEUS LIMITES
Percival Puggina*
Há muitos anos, no velho
balcão da antiga loja de ferragens da Kircher Hillmann situada na
Av. Siqueira Campos em Porto Alegre, conheci um tipo muito
interessante. Ele estava ao meu lado e conversava com o vendedor
sobre uma ferramenta de formato estranho. Perguntei-lhes para que
servia aquilo. "Vou usá-la para os acabamentos de um barco que
estou construindo", esclareceu o comprador. Surpreendeu-me haver
fabricantes de barco em Porto Alegre e fiz alguma observação a
respeito, pois supunha que eles fossem adquiridos de empresas de fora
ou de revendedores. A surpresa maior me veio com a resposta: "Estou
fazendo apenas este, para mim. Quando terminar já estarei aposentado
e tornar-me-ei um navegador solitário". Ainda que não seja
aficionado de esportes náuticos, interessou-me conhecer a embarcação
utilizada para tal finalidade e acabei acompanhando o sujeito até
sua modesta moradia na Zona Sul. Feito em fibra de vidro e ainda sem
os acabamentos, o "bicho" parecia uma grande baleia branca.
Explicou-me que aquele era o sonho de sua vida e que, para
realizá-lo, recusou-se a quaisquer outros prazeres e compromissos,
inclusive ao casamento, tendo poupado todos os tostões que pôde.
Recebi, naquele momento,
uma oportuna lição sobre a liberdade humana e sobre o direito que
temos de buscar nossos próprios caminhos, ainda que solitariamente e
em flagrante misantropia, como era o caso. O episódio ensinou-me a
ser compreensivo com os projetos de vida alheios. Com efeito, o
navegador solitário que conheci na velha loja de ferragens ressurgiu
como exemplo de determinação incontáveis vezes ao longo dos anos.
A mais recente foi quando li sobre Sa Jae-Hyouk, o sul-coreano
levantador de pesos que fraturou o braço ao tentar erguer 158kg em
sua apresentação nos Jogos Olímpicos de Londres.
"O que tem a ver uma
coisa com a outra?" talvez se esteja indagando o leitor. Pois
bem, enquanto assistia algumas das disputas transmitidas pela tevê,
não pude deixar de considerar que certos esportes impõem ao corpo
um tratamento desumano, que inevitavelmente contraria sua natureza,
anatomia e fisiologia. Lesões integram o calendário de eventos de
qualquer atleta ou desportista. No entanto, há
atividades cuja sobrecarga e impactos impostos ao corpo são tão
violentos que acabarão determinando danos permanentes. Será isso,
verdadeiramente, esporte?
Uma coisa é alguém
adotar como objetivo de vida a tarefa de pegar no chão e colocar
acima da cabeça o maior peso possível. O que é de gosto regala a
vida. Outra bem, diferente, é estimular-se tal atividade com
medalhas que quebram ossos. Uma coisa é nos admirarmos com a
flexibilidade dos atletas; outra é torturarem-se crianças com
alongamentos e sobrepesos, para futura glória do Estado em nome do
qual se exibem. Há inúmeras matérias na Internet a respeito dos
treinamentos chineses, por exemplo. Uma coisa é alguém querer ser
atleta de nível olímpico; outra é tornar isso algo tão imperativo
que determine o surgimento das mais sofisticadas técnicas de burlar
os limites da natureza humana, gerando, em contrapartida, toda uma
ciência para detecção de fraudes.
______________
*
Percival Puggina (67)
é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org,
articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país,
autor de Crônicas
contra o totalitarismo;
Cuba, a tragédia da
utopia e Pombas
e Gaviões
Recebido por e-mail.
Nenhum comentário:
Postar um comentário